Infância

Para ler ouvindo Night, do Ludovico Einaudi

Quando penso neste dia, o cheiro do produto que era utilizado no cabelo de minha avó me vem inconfundivelmente à memória, mesclado com o perfume do galho de arruda que sempre adornava sua orelha esquerda. Se me perguntassem que cheiro tem a minha infância, diria que tem cheiro de arruda fresca.

Fui dessas crianças que passava bastante tempo com os avós, mais por vontade do que por necessidade de fato. E durante essas tardes infinitas, às vezes chuvosas, às vezes ensolaradas, outras frias ou tempestuosas, os acompanhava em seus compromissos. Banco? “Deixa que a Bela vai junto”. Supermercado? “Vem com a vó ajudar a escolher mudas. Te compro um sorvete na volta” – o que de fato acontecia. Mas tinha um compromisso em especial que me deixava ansiosa, agitada, de prontidão na porta enquanto esperava o antigo corcel creme subir a avenida para me buscar: o dia do permanente.

Minha avó tinha o cabelo mais liso e fino que eu já tinha visto. E desejava que eles fossem volumosos e cacheados. Então eu e meu avô a acompanhávamos em seu empreito a cada quinze dias.

A cabelereira atendia em sua própria casa. E a casa por si só já era bem impressionante com seus muitos andares, escadas e corredores que te faziam chegar nos mesmos lugares, como passagens secretas. Mas não era por isso que eu gostava de ir lá. Aquela casa, que em minha memória parece maior do que ela de fato deve ser, abrigava um objeto que veio a ser fruto de meu desejo.

Quando o vi pela primeira vez, olhei-o rapidamente e voltei correndo para perto de minha avó. Na segunda vez, entrei pé ante pé na sala em que ele ficava, como se, caso eu ousasse andar normalmente, fosse despertá-lo.

Até que um dia sentei-me um pouco mais perto, como quando a gente quer fazer amizade com alguém, mas não sabe ao certo como chegar. Então fiquei em silêncio e ele também. Olhei seus pés, sua forma imponente e ao mesmo tempo convidativa. Arrisquei uma espiada em seu mecanismo ao rodeá-lo. Feita a volta completa e com um pouco de esforço, sentei-me no banco em frente a ele, pernas curtas com pés balançando. Tinha uma fechadura…será que estava trancado? Prendi a respiração, e com dedinhos ágeis, abri o que parecia ser uma tampa. Para a minha surpresa, deparei-me com o sorriso banguela mais bonito que já tinha visto. Passei os dedos por sobre as teclas, com medo de emitir algum som. Depois imaginei como seria saber o que fazer com tudo aquilo.

No caminho de volta para casa, minha avó contou que não faria mais o permanente ali, pois o produto estava dando alergia à aplicadora. Pensei em contar o que havia feito, mas decidi guardar segredo. Daquele delito, só eu e aquele sorriso saberíamos.

Do que é feita a maçã?

(ou ainda, do que falo quando falo de maçã)

         À primeira vista eu diria que tem casca vermelha ou verde, coloração mais ou menos vibrante e tamanhos variados – de acordo com a espécie ou qualidade dela, acredito. Existe aquela que vem em pacotes da Turma da Mônica e cujo tamanho é bem menor se comparado as comuns. E inevitavelmente associam essas minis maçãs a crianças, muito embora seu sabor seja azedo na maioria das vezes e a carne dela seja pouco saborosa, e o seu público, aquele que paga por elas efetivamente, e as consomem, seja formado majoritariamente por adultos. Há crianças que gostam também. Mas outras, tal qual os livros e a leitura, precisam aprender a gostar. Se faz necessário insistir. E algumas insistências são frutíferas.

Existem maçãs também que são tão, mas tão bonitas, tão grandes e carnudas que nos enganam completamente após a primeira mordida. Quando isso acontecia comigo, eu pensava logo em desprezá-las, beber um copo d’água por cima do gosto e ingerir algo um pouco mais doce e saboroso. Com o tempo, aprendi a não desprezar, mas ver onde aquilo poderia me levar. Será que abriria o meu apetite? Será que me satisfaria por um tempo? Será que seu eu comer mais de uma a fome passa, o sabor melhora, o ânimo vem? Ou será que devo simplesmente saborear nem que seja para me queixar depois? Mas a queixa, ah, a queixa, essa viria e com propriedade.

         Quando me vem a mente uma história nova, seja para um livro, uma crônica ou uma poesia, escrevo primeiro a mão no papel e à tinta para superar a vontade de apagar, e quando vejo o resultado do todo ou de um pequeno fragmento que seja e me sinto satisfeita com o que leio, logo me imagino em um desses programas de entrevista em que perguntam ao convidado, no caso autor, sobre as suas principais influências, obras preferidas, se sempre foi um leitor ou uma leitora voraz. E o ciúme, em se tratando das obras, tal qual um sabor amargo, azedo, permeia a ponta da minha língua, formiga os lábios e paira neles. Abro o jogo e falo ou guardo tudo para mim? Afinal, o meu livro publicado não é mais meu, é de quem lê, o significado que dei a ele se modificou quando o primeiro leitor passou a mão nele e leu as primeiras linhas. Seria justo fazer isso comigo em se tratando dos meus livros preferidos? Ora, são tão meus quanto os meus são deles. Então mudo de assunto e falo do processo de criação dos protagonistas, do diário que criei a mão para cada um deles e de como escrevia como se os dois, cada um a seu modo, me contassem o seu dia, o que sentem, seus medos, preferências, angústias e desgostos. Conto como decorei as páginas com adesivos, recortes, desenhos, rabiscos, ingressos fabricados de eventos que eles iriam se estivessem fora das páginas. Responderia como quando estou no supermercado escolhendo maçãs e perguntasse a um dos funcionários que repõe a fruta no estande, de onde elas vieram, se me indicaria alguma ou se só as trocaria de lugar, do mesmo jeito que fiz com a minha resposta e assim, me deixasse livre para escolher – e no meu caso, livre para que interpretem o que eu havia dito da forma que achassem melhor.

Fato é que eu nem sempre gostei de maçã. Comecei sim pelas da Turma da Mônica, pois via meu irmão, meus primos e primas saboreando-as e mostrando gostar do que ingeriam. Com o tempo passei a querer me nutrir delas também e percebi que o apetite só abria. Então passei a experimentar outras para ver se resolvia: gala, fuji, Argentina, verde. Sempre gostei mais do contraste da verde com a fuji, e essas passaram a ser as minhas preferidas. Ambas firmes, consistentes, refrescantes, emitem o som da crocancia a cada mordida. A primeira, um pouco mais doce, mas nada em excesso, e a segunda, ácida de lacrimejar os olhos.

Se um dia de fato essa entrevista se concretizar, direi que com o tempo, além de saborear o fruto, aprendi a dar outras formas a ele, sendo a torta minha forma preferida, com massa simples e que também precisa ser moldada com as mãos na forma antes de assar. Essa torta pode ser feita com maçãs de todas as qualidades, e que a minha, em constante aprimoramento, tem sempre um mesmo ingrediente em comum: maçãs verdes ou fuji.